Laboro Blog

19 de jul. de 2007

O mundo de Dilbert

por Paula Pacheco para Carta Capital

Não há limites para o universo corporativo quando o assunto é recursos humanos. Muitas empresas atropelam o bom senso na relação com os funcionários
Cerca de 10% da população economicamente ativa está desempregada. Ao mesmo tempo é preciso produzir cada vez mais. Essa é a equação do vale-tudo Regras do jogo

Com a cobrança por maior lucratividade e produtividade, além de resultados cada vez mais imediatos, as empresas não cochilam na hora de abraçar o que acreditam ser soluções promissoras. Não é de hoje que o ambiente de trabalho é atropelado por todo tipo de técnica de recursos humanos da moda. Primeiro, vieram os gurus e os manuais de auto-ajuda. Depois, houve quem se especializasse em oferecer palestras motivacionais com vencedores dos mais variados desafios e esportistas de sucesso – que descobriram aí uma forma de ganhar um dinheiro extra.

Para quem busca uma oportunidade no mercado de trabalho, é preciso também se submeter a todo tipo de novidade em dinâmica de grupo. Alguns testes usados em processos de seleção preocupam o Conselho Federal de Psicologia, que regulamenta a atividade profissional do setor. Sempre surgem casos de consultorias de RH que se apropriam das avaliações de personalidade usadas no exterior sem a preocupação de saber qual é a eficácia entre os brasileiros.

No meio da empolgação, pululam novas e velhas vocações no universo corporativo. Atualmente, por exemplo, alguns consultores de empresa se auto-intitulam coachs. Há o consultor especializado em orientar na melhor roupa para o trabalho, o que usa a neurociência para motivar a equipe, o que ensina o profissional de vendas a se comportar como um pit bull ou o criador de cavalos que aplica as técnicas de adestramento ao mundo dos negócios. Competitividade, liderança e produtividade são alguns dos vícios lingüísticos incorporados ao vocabulário do mundo de Dilbert. O personagem-símbolo da geração downsizing, criado por Scott Adams, é conhecido por preferir computadores aos seres humanos e pela inteligência abaixo da média dos colegas, o que o levou ao cargo de chefe.

Há ainda quem prefira embutir na cabeça dos empregados mensagens metafóricas. Nas palestras motivacionais, os técnicos Luiz Felipe Scolari e Bernardinho e o nadador Gustavo Borges não falam aos executivos sobre negócios, mas sim de esportes. Ao final das apresentações, o clima costuma ser de empolgação diante de histórias de vitória e superação. O mesmo se vê nas apresentações de outras figuras conhecidas nos RHs das empresas, como a família Schürmann, Amyr Klink ou Waldemar Niclevicz, e de outros menos conhecidos, como Rodrigo Ranieri (alpinista), Thomaz Brandolin (fez expedições pelo Pólo Norte e pelo Ártico), Ciro Bottini (vendedor do canal Shoptime) e Carlos Spósito (“único brasileiro a cruzar o Grand Canyon correndo a pé”, diz o site do palestrante). Se isso vai ter utilidade no ambiente profissional, são outros quinhentos.

“As palestras servem de auxílio para o contexto que queremos trabalhar depois. Já levamos nomes como Família Schürmann, Bernardinho e Klever Kolbert (do Rali Paris-Dacar), mas como um recurso a mais dentro de outro tipo de evento”, explica Djalma Barbosa, gerente-geral de Desenvolvimento Organizacional da Companhia Vale do Rio Doce.

A contratação de showmen é apenas uma das formas, ditas modernas, de treinar funcionários. As atividades em grupo, que colocam equipes ou indivíduos em competição ou para enfrentar desafios, muitas vezes geram situações constrangedoras e até humilhantes. Um exemplo: ao final da atividade de treinamento de uma companhia, as mulheres da equipe perdedora tiveram de levantar as saias para mostrar se tinham estrias. A maioria das grandes empresas, no entanto, prefere semear a competição e expor os futuros funcionários ao próprio limite antes mesmo da contratação.

Uma das práticas comuns nas grandes empresas, especialmente entre os funcionários de nível gerencial e de diretoria, são os conhecidos fins de semana em hotéis-fazenda. Nos manuais de RH, este é o outdoor training. Descanso? Uma oportunidade de respirar o ar puro do campo? Prêmio pelo bom desempenho? Não. Nesses lugares, palestrantes falam sobre a importância do trabalho em equipe para se atingir resultados mais ambiciosos e, na hora da aula prática, os empregados têm de promover abraços coletivos, subir em árvores ou, como aconteceu na Duke Energy, participar de um rafting.

A proposta da multinacional americana ao oferecer atividades de aventura é que os executivos aprendam a superar desafios e a trabalhar em equipe. Elaine Lombardi, gerente de Treinamento e Desenvolvimento da Duke Energy, admite que nem todos aprovam esse tipo de proposta. “Os mais velhos têm uma certa resistência ao contato físico, mas fazemos isso para que se aprenda a construir uma equipe e a tomar decisões mais facilmente”, comenta. A executiva afirma que, apesar de não haver unanimidade entre os empregados, esse tipo de atividade traz bons resultados para a empresa.

Para André Vieira, diretor de RH da companhia T-Systems, as exigências para motivar a dedicação e obter bons resultados começam na fase de contratação de pessoal. “A cultura da companhia é de performance. Exigimos isso desde o processo de seleção. Queremos gente com olhar diferenciado. Não adianta vir com um discurso vazio, sem solidez”, adverte Vieira.

Na busca por melhor desempenho, as empresas, além de seguirem cartilhas de RH, também procuram desenvolver os próprios modelos. Na seguradora Cardif (do Grupo BNP Paribas), uma das formas de motivar os 1,4 mil empregados é a recém-lançada campanha com personagens do tipo super-herói. Cada um representa um valor, como criatividade, ambição e transparência. Segundo Cynthia Jobim, superintendente de RH, ainda que o método pareça estranho para alguns, é uma maneira de disseminar na equipe os valores da empresa.

Na Nossa Caixa, banco estatal de São Paulo, são aplicadas, no processo de seleção, provas de conhecimentos específicos, testes de aptidão, dinâmicas de grupo, entrevistas técnicas ou por competência. Segundo a instituição, é possível comprovar os ganhos de produtividade com um maior envolvimento entre os funcionários. “É necessário quebrar um pouco a formalidade para obter fluidez na condução de um trabalho de dinâmica de grupo, porém, os excessos devem ser evitados”, informa a direção do banco.

E, assim como em outras atividades, sempre há quem se supere. O Grupo Primaveras, especializado em serviços funerários, decidiu colocar os funcionários para assistir a filmes relacionados à morte com o objetivo de prepará-los para o momento de abordar as famílias dos falecidos. Depois de produções como A Noiva Cadáver, psicólogos debatem a temática com os empregados.

José Eduardo Borba, dono do Projeto Doma, apostou num programa batizado de Horsemanship, um workshop de um dia numa fazenda no interior paulista, no qual faz analogias entre a forma de domar cavalos e a de tratar empregados. A novidade tem até concorrente. Aluisio Marins, filho de Luiz Marins (um dos personagens mais manjados do mundo corporativo), oferece a Universidade do Cavalo, que aborda temas como respeito e relacionamento justo. “Trabalhar com cavalos pode ensinar muito aos executivos, como exercer a liderança, respeitar os limites, ter humildade e atuar em equipe. Autoridade não se mostra com o estalar do chicote”, filosofa Borba.

Algumas técnicas, é bom ressaltar, devem ter resultados comprovadamente bons tanto no aprimoramento dos funcionários como no desempenho das companhias. Mas o fato é que muitas empresas admitem não saber como mensurar o efeito desses treinamentos. Os funcionários, por sua vez, simplesmente acreditam que tanto investimento não pode ser em vão. Ou, diante da falta de oportunidades, preferem aceitar pagar o mico de atividades pouco ortodoxas, ditadas pelo modismo do RH.

Os números mostram que conseguir emprego no Brasil não é tarefa fácil. Cerca de 10% da população economicamente ativa está desempregada, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – sem contar aqueles no mercado informal ou no subemprego. Com tanta gente à procura de carteira de trabalho assinada de um lado e empresas em busca de ganhos de produtividade com os menores custos de outro, pode-se dizer que hoje se instituiu o vale-tudo para quem contrata e para quem é candidato a uma vaga.

As empresas têm na mira atropelar a concorrência e turbinar os lucros. O candidato quer o emprego e faz o que for preciso para consegui-lo e mantê-lo. Pesquisa recente da Organização Internacional do Trabalho (OIT) apontou que um em cada cinco profissionais no mundo trabalha um número excessivo de horas com o objetivo de aumentar os rendimentos ou simplesmente para atender às metas de produtividade. Nesse liquidificador chamado processo seletivo, poucos se perguntam: “O que eu faria por um emprego?”

O jovem R.C.R., de 24 anos, de Santo André (ABC Paulista), calcula ter participado de pelo menos 60 dinâmicas de grupo. Ele ainda está em busca de uma vaga, daí ser apresentado apenas pelas iniciais. Em cinco anos no mercado de trabalho, diz ter visto de tudo. Numa das avaliações, precisou mostrar-se convincente como vendedor de papel higiênico usado. Os colegas ao lado tiveram de provar a mesma habilidade com produtos como chiclete mastigado e gel para calvos.

Sigmar Malvezzi, professor do curso de Psicologia da Universidade de São Paulo, acredita que muita gente hoje é instada a encontrar lugar nos projetos e assim vai construindo a carreira. O resultado é que, como o projeto é uma ação dinâmica, “os sentidos, valores e crenças funcionam como um ecossistema que está sempre se adaptando a alterações no ambiente. Tal fato coloca os indivíduos, carentes de reflexão, à mercê dos modismos. Criam-se identidades e os indivíduos são julgados, quase sempre em relação a elas, daí a preocupação de mostrar sinais dessas identidades, para ser aceito no grupo”, explica o pesquisador.

Para muitos profissionais de RH, de empresas de seleção e psicólogos, testes de avaliação como esses são úteis para descobrir se um potencial funcionário tem boa lábia na hora de convencer o cliente, seja na área de vendas, seja em atividades mais simples, como o trabalho em caixa de supermercados ou como repositor de mercadorias. Mas há quem acredite que a proliferação desse tipo de técnica de avaliação de candidatos, também usada na reciclagem de funcionários, é o que há de pior. O tema preocupa o Conselho Federal de Psicologia.

Ricardo Primi, coordenador do Laboratório de Avaliação Psicológica e Educacional (LabAPE) da Universidade São Francisco, de Itatiba (SP), explica que normalmente os testes usados nessas dinâmicas são psicológicos. Deveriam, segundo a legislação brasileira, ser aplicados por profissionais da área e submetidos à avaliação do Conselho. “Se o candidato provar que um teste desses não foi aprovado pelo Conselho ou não foi aplicado por um psicólogo, pode questionar o processo seletivo da empresa na Justiça”, alerta.

Primi, em parceria com mais dois especialistas, fez há quatro anos uma pesquisa sobre testes de seleção. No resultado, constatou-se que os recrutadores têm um conhecimento raso sobre os testes de avaliação. No geral, eles confiam nas ferramentas sem saber quão eficazes elas podem ser. Para o estudioso, a melhor técnica ainda é a entrevista.

Os dois empregos nos quais R.C.R. teve melhor desempenho usaram apenas a avaliação do currículo e a entrevista na hora da contratação. Para o rapaz, que tem o ensino médio e agora se dedica a um curso de inglês, por mais que se tente levar as dinâmicas com bom humor, não há como voltar para casa sem se sentir na sarjeta. “Sempre fica uma interrogação. Será que a intenção é nos pegar de calça curta, sem saber qual é o objetivo dos testes? No fundo, parecemos macacos vestidos de terno e gravata que estão sendo treinados. Tenho a sensação de que isso não passa de uma diversão para quem comanda os processos de seleção”, lamenta.

Uma busca no site de relacionamento Orkut revela um lado cruel da busca pelo emprego. São 23 comunidades e quase 3 mil pessoas que se dedicam a trocar experiências – no mínimo tristes – sobre as dinâmicas.

Daniele Pinheiro, 26 anos, do Rio de Janeiro, é moderadora de uma dessas comunidades. “Em vez de a empresa procurar alguém que se encaixe no perfil dela, busca quem se encaixa no perfil dos testes.” Formada em publicidade e estudante de cinema, ela passou por quatro dinâmicas. Numa delas, o teste procurava mediar o nível de ousadia dos candidatos. Um deles chegou a subir na mesa para se diferenciar. “Não entendo qual é a coerência”, resume. A publicitária garante que, diante da proliferação desse tipo de processo seletivo, muita gente em busca de emprego tem se dedicado a estudar os testes e se comporta como se tivesse um texto na ponta da língua. Diante do quadro, Daniele é categórica: “Não é preciso se sujeitar a qualquer coisa para ter um emprego”.

Patrícia Barros, 23 anos, também vive no Rio e lidera uma das comunidades “Odeio Dinâmica de Grupo”. Conta que tomou a iniciativa durante uma crise súbita de indignação. Numa das dinâmicas, foi pedido aos participantes que mostrassem por meio de mímica quais eram suas principais qualidades. “Um dos rapazes se jogou no chão, começou a rastejar e fingir que passava por obstáculos, tudo muito bizarro. Eu me pergunto qual é o critério para empregar alguém.”

As extravagâncias não param por aí. No bate-papo com os colegas de Orkut, Patrícia soube de uma atividade na qual dois candidatos tinham de colocar uma das pernas no mesmo saco para participar de uma corrida. Uma das atividades mais comuns, conta, é pedir que se escolha uma fruta ou um animal com o qual se identifica mais. Formada em Jornalismo, agora ela estuda Direito. Ana Ramos, 23 anos, de Porto Alegre, conviveu com o mundo das dinâmicas nas aulas do curso de Psicologia, durante um ano. “Para os professores, é uma forma de despertar a expressão do grupo, mas nem todo mundo vê assim. A maioria vê nas dinâmicas uma forma de rotular as pessoas. Será que esta é a forma ideal de seleção?”, pergunta a psicóloga.

Segundo Primi, uma das queixas mais freqüentes entre os candidatos a um emprego é a subjetividade das dinâmicas. “Perguntar sobre uma fruta ou animal não pode servir para defini-lo como um bom ou mau profissional. Além disso, não é possível garantir que o comportamento do candidato numa dinâmica vá se repetir sempre. Pode ser algo ensaiado, preparado para a seleção”, explica Primi. Para Raimundo Ramos, gerente de Desenvolvimento de RH da Volkswagen, é indispensável que as empresas invistam em profissionais capacitados para a avaliação de novos empregados: “Por isso acredito que a entrevista bem dirigida ainda é a melhor ferramenta”.

Nem todas as empresas aderiram às dinâmicas. A multinacional Dow, voltada ao setor químico, tem cerca de 2 mil funcionários e procura selecionar novos empregados por meio de currículo e de entrevista, segundo Vicente Teixeira, diretor de Comunicação e Corporativo. “É bem melhor que o candidato passe por uma entrevista com três, até cinco profissionais do que ter de enfrentar testes. A possibilidade de a empresa se enganar é bem menor”, opina. Teixeira, que também é vice-presidente da Associação Brasileira de Recursos Humanos, pondera que as dinâmicas podem ser úteis quando a massa de candidatos é muito grande, mas lembra: “Quem nunca fez esse tipo de avaliação provavelmente pode ser prejudicado pela falta de vivência”. Na opinião de Alberto Brisola, diretor de RH da Oracle, a dinâmica de grupo é necessária. “É um dos pilares da boa seleção”, acredita.

As muitas novidades que surgem sazonalmente no mundo do RH e do treinamento corporativo, aliadas ao desenvolvimento da genética, podem, no futuro, resumir a seleção de pessoal a um exame do DNA do candidato. Depois, o treinamento poderá ser feito todo no mundo virtual, individualmente ou em grupo. Pelo menos, ninguém verá o colega pagar um mico ou ser humilhado.